O quebra-cabeça da acumulação de benefícios

Dentre as mudanças promovidas pela reforma da previdência em 2019, a acumulação de benefícios está entre suas maiores polêmicas por causa da sua complexidade. Quase três anos após a EC nº 103, previdenciaristas continuam a estudar a matéria e costumam divergir quanto a sua aplicação e abrangência. Afinal, quais benefícios podem ser afetados pelas novas regras de acumulação?

Primeiro é importante esclarecer que o artigo 24 da EC nº 103 é norma de eficácia plena e aplicação imediata a todos os regimes próprios de previdência, diferente do que ocorreu com as demais regras previdenciárias graças a desconstitucionalização das mesmas.

Também não há divergência quanto ao fato das regras de acumulação de benefícios não afetarem acumulação de aposentadorias, sejam aquelas originárias de diferentes regimes de previdência social ou, principalmente, aquelas decorrentes de cargos acumuláveis na forma do artigo 37, inciso XVI, da Constituição.

Porém as convergências costumam parar por aqui.

Por exemplo, vemos que o caput do artigo 24 veda a acumulação de mais de uma pensão por morte no âmbito do mesmo regime de previdência, ressalvadas aquelas decorrentes do exercício de cargos acumuláveis. Já o § 1º prevê exceções à regra que veda a acumulação e o § 2º dispõe as regras aplicáveis a essas exceções – e apenas a elas.

A ressalva acima é importante, já que é expresso no texto legal de que os redutores previstos no § 2º só se aplicam “nas hipóteses das acumulações previstas no § 1º”, isto é, apenas nos casos de acumulações de pensões de diferentes regimes de previdência social, de pensão com aposentadoria de qualquer regime ou de pensão decorrente de atividade militar com aposentadoria de qualquer regime.

A natureza das regras de acumulação, portanto, não é a de coibir todo e qualquer acúmulo e sim limitar quais benefícios podem ser acumulados e de que forma.

Assim, se um servidor que já recebia duas aposentadorias decorrentes do exercício de cargos acumuláveis antes da vigência da EC nº 103 e passa a receber duas pensões decorrentes do exercício de cargos acumuláveis pelo seu instituidor após essa data, não há como aplicar as regras de acumulação a qualquer um dos quatro benefícios concedidos. Como vimos, as novas regras não afetam acumulações de aposentadorias e as acumulações de pensões decorrentes do exercício de cargos acumuláveis foram excluídas das regras do § 2º pelo próprio caput do artigo 24. Mesmo que se argumente tratar-se de uma acumulação entre aposentadorias e pensões, não há como, em tese, aplicar as reduções nesse caso sem ofender o texto constitucional, uma vez que essas hipóteses de acumulações decorrem do exercício de cargos acumuláveis autorizado pela Constituição.

Outro ponto: o § 4º do artigo 24 prevê expressamente que “as restrições previstas neste artigo não serão aplicadas se o direito aos benefícios houver sido adquirido antes da data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional”.

Tal qual o parágrafo supracitado, há mais dispositivos na EC nº 103 que homenageiam o direito adquirido, como o artigo 3º, § 1º, que prevê que os proventos de aposentadorias e pensões sejam calculados e reajustados de acordo com a legislação em vigor à época em que foram atendidos os requisitos nela estabelecidos para a concessão desses benefícios.

Parece então haver uma preocupação no texto da EC nº 103 em proteger o direito adquirido, o que é natural, já que quando uma nova norma passa a existir no ordenamento jurídico, há de se preservar a legítima expectativa do indivíduo na manutenção do seu direito, sob pena de afronta ao princípio da confiança.

Nessa senda, é possível sustentar que benefícios concedidos antes de 13.11.2019 não devem ser afetados pelas novas regras de acumulação mesmo que um novo benefício venha a ser acumulado após essa mesma data. Não parece razoável, por exemplo, que duas pensões decorrentes de cargos acumuláveis possam cair na regra dos redutores apenas em razão de uma aposentadoria concedida “a posteriori”. Obrigar o beneficiário a uma “escolha de Sofia” não é uma alternativa viável.

Até mesmo um benefício preexistente parece não poder ser afetado pelas novas regras, pois embora a acumulação tenha surgido na vigência das novas regras, há de se proteger primeiro o benefício concedido sob a égide da legislação anterior, já que os redutores aplicáveis, ainda que não alterem as regras de concessão desse benefício, afetam diretamente no valor dos proventos que o beneficiário efetivamente faz jus.

Todavia aqui é forte a corrente divergente, sobretudo a partir da publicação da Portaria MTP nº 1.467/22, que em seu artigo 165, § 7º, prevê que as regras de acumulação de aplicam a todos os benefícios acumulados, inclusive os anteriores. Porém não se pode ignorar que tal portaria parece exceder os limites de regulamentação que a Constituição lhe outorga, o que faria dela uma norma potencialmente inconstitucional.

Uma tese já difundida é que somente o novo benefício possa ser afetado pelos redutores, mantendo incólume o valor do benefício concedido anteriormente. A primeira vista, parece ser um meio-termo razoável de ser aplicado, mas que dificilmente seria observado pela Administração Pública, sobretudo após a publicação da famigerada Portaria MTP nº 1.467/22.

Em resumo, ainda há muitas peças desse quebra-cabeça que precisam ser encaixadas e a sua montagem se faz com muito estudo sobre matéria e, principalmente, levando ao Poder Judiciário as questões mais controversas para que possam ser dirimidas. Trazer pontos de vista polêmicos e divergentes ao debate é só o começo.

Fonte: Rafael Campos Advocacia.

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